quinta-feira, 15 de maio de 2014

Cineasta negra brasileira aborda solidão feminina na velhice e garante espaço em Cannes

“O Dia de Jerusa” também nos faz pensar sobre a pressa cotidiana

A atriz Léa Garcia dá vida à Jerusa
Imagens: Divulgação O Dia de Jerusa

Por Shirlene Marques
De Recife (Pernambuco-Brasil)

Durante o mês de abril, em busca de minhas pautas fui “garimpar” comunidades do Facebook que falavam de cinema negro brasileiro e deparei-me com a alegria de algumas pessoas que comemoravam a seleção de um filme brasileiro, chamado o “O Dia de Jerusa”, para ser  exibido na programação de curta-metragem do Festival de Cannes, que está acontecendo na França até dia 25 de maio. Vi uma imagem grande com a foto da atriz Léa Garcia, bem conhecida de muitos, e imaginei primeiramente, que tal filme era fruto de algum cineasta já “calejado”.

Em buscas sobre o filme na grande mídia, não encontrava textos mais profundos, Restou-me o Facebook como fonte de pesquisa. Tudo me chamava à atenção nas postagens que via e indagações surgiram: “Como pode? o jornal não fala nada sobre tal feito?”. Fui atrás e descobri que o filme havia sido dirigido por uma cineasta negra baiana, que mora em São Paulo, de nome Viviane Ferreira. Mas quem ela era? Que filme era esta? Tinha  pouca informação até então, mas a mente cheia de curiosidades e de metas.

Compartilho, nesta semana,  em que Viviane Ferreira está em Cannes-França, juntamente com outra cineasta negra, a Eliciana Nascimento, a vitória de duas cineastas negras brasileiras. 

Traga nesta postagem o resultado de uma entrevista feita por e-mail com a jovem cineasta Viviane. Ela fala sobre as suas ideias no campo do cinema; ideias que são sedimentadas na certeza de que o cinema brasileiro precisa fomentar produções de cineastas negras(os)  para que possam voar alto.

“O Dia de Jerusa” é reflexão sobre velhice, solidão e juventude
A imagem de divulgação do curta nos traz uma senhora idosa, negra, com um olhar triste e andando sozinha. Parte da existência de um fato concreto que faz parte do cotidiano nas grandes cidades, a solidão na velhice. Retrata um fato, que até mesmo nós, o produzimos na correria dos nossos dias: a contribuição dos mais novos para tal mundo solitário. Esta é a grande reflexão trazida pelo filme dirigido por Viviane Ferreira e produzido por Elcimar Pereira.

“Um dia conheci uma senhora que estava bem amargurada e reclamava do comportamento ausente dos filhos.  A dor que aquela mulher transmitia ao falar de sua solidão me marcou de tal forma que senti a necessidade de escrever algo tendo a solidão como foco, então surgiu o roteiro do filme O Dia de Jerusa”, conta-nos a diretora.

O roteiro ficou dois anos engavetados e somente começou a se materializar com o apoio da empresa Odun Formação & Produção que é voltada para produção de conteúdo cultural com recorte de gênero. A produtora Elcimar Dias Pereira estava selecionando projetos, no ano de 2010, para formatar e concorrer em editais que financiam filmes.  O roteiro da cineasta foi um dos escolhidos para trilhar o caminho de uma possível realização. 

Viviane conta que tinha a certeza de que não daria para montar o filme de forma amadora e com poucos recursos. De acordo com ela, o Brasil não estimula a produção cinematográfica feita por negras(as) e deixa que muitos talentos fiquem à margem.  Entre a escolha do roteiro e  a aprovação do projeto em algum edital para financiamento público  passaram-se dois anos.

“ Escrevemos o Jerusa em todos os editais para curtas, federais, estaduais e municipais, até que em setembro de 2012 conseguimos vencer o edital de Fomento ao Cinema da Prefeitura Municipal de São Paulo”, relembra a diretora.

Com a verba em mãos, a cineasta conseguiu montar a equipe e fazer a gravação em março de 2013. Para interpretar o papel de Jerusa foi escolhida a consagrada atriz negra Léa Garcia, que divide as cenas com a jovem atriz Débora Marçal (Silvia). O curta gira em torno de um encontro entre as duas, entre as gerações.

Para retratar o cotidiano solitário de Jerusa Viviane decidiu concentrar as filmagens no famoso bairro do Bixiga, em São Paulo. “Escrevi o roteiro descrevendo aquele bairro, que guarda em si um histórico imbricado com a trajetória da população negra do centro de São Paulo. Gravamos a cena de “Kleber”, morador de rua, recitando trechos do poema “Mãe” de Luiz Gama, na rua Abolição,  isso simbolicamente nos diz muito. Seguimos gravando a cena dos  “apaixonados na rua”, na esquina da Abolição com a Jardim Francisco Marcos; neste local foi montada a primeira sede da Odun Formação & Produção, empresa que estimulou o nascimento do curta”, detalhou Viviane Ferreira. 

Atriz Débora Marçal interpreta a jovem Silvia


INDO PARA A TELA

A captação do curta foi feita em pouquíssimo tempo, foram duas diárias externas e duas internas. “Nossa equipe composta por aproximadamente 20 pessoas viveu um ritmo alucinante em diárias que por vezes ultrapassaram 10 horas de trabalho. Porém, a equipe se manteve firme, solidária e feliz, garantindo um set muito bonito, conduzido pela generosidade”, revela a diretora. O quesito generosidade teve o apoio da irmã de Viviane, que cedeu a própria casa, para que fosse completamente modificada para servir de cenário.



CONQUISTAS COM O DIA DE JERUSA


Em dezembro de 2013, o filme foi finalizado e não demorou muito para começar as andanças e conquistas.  No mês de março, o curta foi exibido no VII Encontro de Cinema Negro Brasil África Caribe: Zózimo Bulbul, no Rio de Janeiro, e naquele dia chegou um grande resultado positivo para o filme: “ Tínhamos acabado de estrear o filme na noite de abertura do Encontro e logo em seguida, recebemos a linda notícia de que o filme havia sido selecionado para ser exibido em Cannes”, relembra Viviane que está na França, representando o povo negro brasileiro.



Este maio de 2014 é momento importante para as cineastas brasileiras Viviane Ferreira e Eliciana Nascimento, duas negras baianas. Elas demonstram que a cor nunca deve ser empecilho para grandes sonhos e projetos. Revelando a necessidade urgente de se apoiar bons projetos nascidos de mentes negras brasileiras. Não tinha como deixar de perguntar à Viviane o sentimento de ir mostrar o filme em Cannes e deixo aqui o relato consciente da necessidade de mudanças  para a produção de filmes no Brasil:
“Tenho certeza que estar em Cannes significa muito para mim e para os meus, sinto o intensificar da responsabilidade que assumi junto a tod@s que contribuem com a minha trajetória. Vou para Cannes com a tranquilidade de que não é o holofote do glamour que me impulsiona à fazer cinema, mas consciente de que ele é importante para jogarmos luz na realidade desigual que a indústria audiovisual submete cineastas negros brasileiros. 

Estar em Cannes poderia ser algo rotineiro entre cineastas negros, se não enfrentássemos cotidianamente o racismo institucional. Como atos que impediram, de uma só vez, que 30 jovens negros realizem seus curtas-metragens que poderiam integrar a programação do Short Film Corner. Estar em Cannes ao lado de Eliciana Nascimento  representando minha Bahia, meu Brasil é a certeza de que não estamos sozinhas, é o resultado da determinação de nosso provo preto em manter suas narrativas gravadas nas pupilas do mundo”, relata e esclarece Viviane Ferreira.     

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